Cinco bilhões de potenciais olhos e ouvidos. Cinco bilhões de assinantes de telefonia móvel em todo o mundo que, dispondo de um smartphone, podem ter suas câmeras e microfones acessados pela polícia ou hackers, a qualquer instante. E os aparelhos nem precisam estar ligados. O Grande Irmão de Orwell chegou sorrateiro, invadiu bolsos, mesas e cabeceiras na forma de um aparelhinho sem o qual já não se vive. E monitora suas atividades, seja em nome do Estado ou do Mercado –já que polícias ou empresas podem monitorar o que quiserem, quando quiserem, e regulações sobre isso praticamente inexistem.
Os cinco bilhões de assinantes de linhas móveis, computados pela entidade de telefonia móvel americana GSMA, perfazem uma cifra assustadora. Parecem poucas as 170 milhões de câmeras de circuito fechado de TV na China que conseguem fazer reconhecimento facial –ou as 249 câmeras do projeto City Cameras, da prefeitura de São Paulo.
Só no Brasil, o número total de celulares era de 235,7 milhões em abril deste ano, segundo o site Teleco, que acompanha números do setor de telecomunicações. Isso são só os aparelhos cuja venda foi oficialmente registrada no país –o valor não considera os telefones trazidos do exterior sem passar pela Anatel, seja por contrabando pessoal ou profissional.
Há mais de uma década fala-se de técnicas utilizadas por agências de investigação dos EUA e da Europa para acessar mais do que ligações telefônicas –o famoso “grampo” da era da telefonia analógica.
Em 2006, por exemplo, o FBI utilizou acesso remoto a microfones de celulares (inclusive desligados) para investigar operações criminosas em Nova York.
Em 2011, a polícia britânica adquiriu uma tecnologia que permite rastrear IMEIs específicos num raio de 10 quilômetros quadrados. IMEI significa International Mobile Equipment Identity (ou Identidade Internacional de Equipamento Móvel), e é um número de 15 dígitos que identifica de maneira única todos os celulares. Além de conseguir rastrear os movimentos de qualquer pessoa em tempo real, a polícia britânica pode interceptar ligações e mensagens, e até mesmo desligar qualquer telefone dentro deste raio –isso, justifica-se, caso o aparelho possa ser usado como detonador remoto de uma bomba, por exemplo.
Em 2013, na Alemanha, o especialista em segurança da informação Jacob Appelbaum revelou que a NSA, agência nacional de segurança dos EUA, desenvolveu spyware capaz de interceptar câmera e microfone do iPhone, entre outras informações enviadas ou recebidas via texto.
Edward Snowden, o mundialmente famoso ex-agente da NSA, revelou em 2014 uma operação chamada Optic Nerves, em que agências de inteligência dos EUA e do Reino Unido obtiveram imagens de webcam de quase 2 milhões de usuários de Internet sem qualquer permissão ou investigação sobre eles.
No final de 2016, um documentarista instalou um aplicativo de espionagem em seu telefone e deixou com que ele fosse roubado –o resultado é o curta “Find my phone”, com imagens e áudio do assaltante.
Segurança vs. privacidade
Abusos à parte, é claro que smartphones podem ajudar a resolver crimes. Seja por aplicativos de denúncia como os do Metrô de SP ou da polícia de Saint Louis, ou até apps colaborativos de ocorrências como o Polícia Popular. Ou então, partindo para a ficção (e sem cair no clichê de Black Mirror, série repleta de referências ao futuro tecnológico), quando a polícia espanhola intercepta imagens de um celular de dentro da Casa da Moeda, na série “Casa de Papel”.
Aqui no Brasil, acaba de ser aprovado um projeto de lei sobre a proteção de dados pessoais. Ele estabelece o que são dados considerados sensíveis e também regula o tratamento de dados por empresas internacionais –ou seja, até gigantes como Google e Facebook teriam que seguir a regulação, apesar de tratar as informações em servidores fora do Brasil.
Porém a Constituição de 1988 já considerava como inviolável o sigilo de correspondência e de comunicações telefônicas. E desde 1996 o “grampo” telefônico só é autorizado por um juiz caso haja investigação em curso. Além disso, em 2012 a Lei Carolina Dieckmann tornou crime invadir computadores, tablets ou smartphones, conectados ou não à internet, com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações. E para completar em 2014, com a aprovação do Marco Civil da Internet, inclusive as comunicações por IP têm sigilo e inviolabilidade garantidos por força de lei.
Porém governos e iniciativa privada têm flertado cada vez mais com tecnologias de monitoramento digital. A questão é o quanto de nossa privacidade aceitamos comprometer em nome da segurança.
Ainda dá para escapar?
Para evitar o Grande Irmão (se é que ainda é possível), é preciso primeiro pensar em auto-educação. Criar ou compartilhar fotos e conteúdo íntimo, por exemplo, é a primeira ação a ser evitada –por mais que confie em seus interlocutores, o conteúdo sempre trafega por uma rede, e pode ser interceptado.
Em seguida, é importante ter consciência de que aplicações você instala em seu celular. Aparelhos com o sistema Android, por exemplo, pedem sua permissão de acesso a recursos do telefone ao instalar apps. Pense nisso com carinho. Afinal, quando concede acesso à sua câmera para um app, instantaneamente ele pode:
Por isso é fundamental ter cuidado com as permissões. O app que está instalando precisa mesmo de acesso à câmera? E ao microfone? Pode ser um controle mínimo de privacidade diante das técnicas mais avançadas de hackers ou agências de investigação, mas já é um começo.
E se o criador do Facebook e um ex-diretor do FBI cobrem a câmera do notebook para trabalhar, que mensagem enviam para nós, reles mortais? Claro, são figuras públicas. Mas na era das redes sociais, quem não é –ou pode se tornar?
Fonte: UOL