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Estado Dependente – Internações de dependentes químicos pagas pelo Espírito Santo aumentam quase 100 vezes em oito anos

O estado gastou, por determinações da Justiça, R$ 148 milhões em oito anos com a compra de leitos particulares para tratamento de dependência química e transtornos mentais no Espírito Santo. O governo considera o gasto irracional e culpa o judiciário. A Justiça alega que a decisão pelas internações é tomada porque a rede pública não cumpre o seu papel.

Foram 4.225 internações feitas em clínicas e comunidades terapêuticas. Enquanto isso, a rede de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, tratamento do Sistema Único de Saúde (SUS) continua incompleta no estado.

Com uma lista de 23 instituições em mãos, a reportagem constatou que poucas clínicas e comunidades terapêuticas acumulam grandes fatias desses gastos.

São locais que possuem, em geral, estruturas mais satisfatórias, com grandes áreas de lazer e capacidade para mais pessoas, deixando qualquer unidade da rede pública para trás, em termos de espaço físico.

A luta antimanicomial iniciada na década de 70 — que resultou na Lei 10.216, sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais — tinha como objetivo pôr fim aos manicômios, mas esse tipo de instituição particular, de menor porte, começou a se alastrar.

O grupo Fênix, coordenado pela doutora em Polícia Social Fabíola Leal, entrevistou 268 instituições que ofereciam serviços de atendimento para dependentes químicos por todo o Espírito Santo. Entre elas, 94% eram privadas, de acordo com a pesquisa, publicada em 2014.

A proposta de enclausuramento, que antes era concentrada em um grande estabelecimento (o manicômio), passou a ser pulverizada com essas instituições espalhadas pelo estado, segundo a doutora em Bioética Elda Bussinguer, coordenadora da pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória.

Além de retirar os indivíduos do convívio social, a característica de privatização da saúde é notável nesses casos, de acordo com Elda, já que existe um mercado direcionado para o volume de gastos que está sendo garantido pelo estado para essas internações.

Mesmo com todo aparato, a clínica que chegou a ter 100 funcionários foi alvo de diversas denúncias, admite o próprio presidente do instituto, Luiz Alexandre Vervloet.

Um dos casos encontrados pela reportagem, por meio da busca no Tribunal de Justiça, foi arquivado antes mesmo de ser julgado. Passados quatro anos, houve prescrição do crime de maus-tratos denunciado.

Para a doutora em Política Social Fabíola Xavier Leal, que representa a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) no Conselho Estadual sobre Drogas, a internação em clínicas e comunidades terapêuticas é feita, muitas vezes, devido à ausência de serviços na rede pública. Mesmo assim, a situação é inaceitável.

No Espírito Santo, a rede pública extra-hospitalar para o tratamento de dependentes químicos, composta pelos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), poderia ser ampliada para mais cinco municípios, conforme a legislação. Em outros três, as unidades já existentes poderiam ter leitos de recuperação.

Os Caps são serviços de saúde mental “de porta aberta”, com entrada pelo SUS. Os dependentes químicos recebem atendimento na modalidade AD (álcool e drogas), durante o dia. Atualmente, os Caps AD existem em cinco municípios: Vitória, Vila Velha, Serra, Cachoeiro e Colatina.

O Caps de Vitória é o único do estado que possui a classificação AD III, que atua 24 horas por dia, sete dias por semana e possui leitos para cuidados contínuos.

Os municípios em que poderiam ser implementados Caps AD são: Cariacica, Viana, Guarapari, Aracruz e Linhares. Os que podem ter leitos ficam em Vila Velha, Serra e Cachoeiro.

Esses serviços são distribuídos de acordo com parâmetros populacionais pré-definidos pelo Ministério da Saúde.

Os Caps AD são indicados para municípios com população a partir de 70 mil habitantes, sendo que para municípios com mais de 200 mil habitantes é indicada a implantação de Caps AD III.

Nos municípios com população entre 15 e 70 mil habitantes, podem existir Caps I, que atendem pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, e também com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.

REDUÇÃO DE DANOS

Uma característica comum entre clínicas e comunidades terapêuticas é exigência da abstinência. O tratamento oferecido nos Caps, por outro lado, não tem essa exigência.

O objetivo é apostar num conjunto de políticas públicas ligadas ao enfrentamento de problemas relacionados ao uso de drogas, a chamada redução de danos.

O doutor em Saúde Pública e pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, elogia a rede de atendimento psicossocial do estado, lembrado como pioneiro nessa vertente, apesar de haver falhas. “Nesses termos das políticas públicas, o Espírito Santo é bastante avançado”, avalia.

Os tratamentos oferecidos em clínicas são caracterizados por Amarante como locais de violência e desrespeito. Já as comunidades terapêuticas recebem o adjetivo “fraude”.

A política de redução de danos pode ser aplicada de várias formas. Nos tratamentos feitos a partir dessa perspectiva, a pessoa tem a possibilidade de reorientar a sua vida e fazer um pacto consigo mesma, explica Paulo.

“A gente não trata drogas, a gente trata pessoas. Tem que procurar saber o que acontece na vida delas. É uma tentativa de tentar solucionar a questão por meio de políticas públicas, de arte, de música. O que uma banda de música numa cidade de periferia pode fazer?”, indaga.

No Caps de Vitória, a reportagem conversou com dependentes químicos que já passaram por diferentes tipos de tratamento.

“Tudo começou na redução de danos, mas eu também já fiquei em comunidades terapêuticas. A redução de danos é mais completa, as comunidades terapêuticas precisam se organizar melhor”, opina Adjefisson, usuário de crack.

GASTO IRRACIONAL

Enquanto a rede de tratamento do SUS continua com seu desenho incompleto, a judicialização da saúde impõe o gasto de um dinheiro que poderia ser revertido em políticas públicas.

O secretário de estado da saúde, Ricardo de Oliveira, classifica o gasto com internações por determinação judicial como uma “irracionalidade”.

“Essa internação, do jeito que está sendo feita, não resolve nada. Estamos desperdiçando recurso. Não tem eficácia. É preciso reorganizar a política. Pela falta de infraestrutura, nós temos que seguir essa determinação judicial. Mesmo onde há Caps, está tendo internação”, reconhece Oliveira.

Para doutora em Bioética Elda Bussinguer, a privatização da saúde mental é cômoda tanto para Executivo quanto para o Judiciário.

CHANCELA DA JUSTIÇA

O juiz Paulo Cesar de Carvalho, membro do Comitê Executivo Estadual do Fórum Nacional de Saúde, diz que a recomendação feita pelo Tribunal de Justiça é que, se possível, os magistrados ouçam o gestor da saúde antes de determinar o pagamento de internações.

O juiz explica que, no caso da dependência química, o magistrado fica vinculado a um médico, que é o responsável por dizer se há necessidade de internação. “O relevante é que o juiz não determina a internação, ele examina um pedido feito pela parte, fundado em um laudo médico. Não raro esse pedido é feito por profissionais do próprio estado”, justifica.

O Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES) informou que a orientação é de que o médico psiquiatra avalie a melhor forma de tratamento. “No entanto, a decisão sobre internação consentida ou compulsória não cabe ao médico”, diz a nota enviada à reportagem.

O magistrado também afirma que os municípios não estão devidamente aparelhados para atender os dependentes químicos e acredita que as internações pela via judicial devam continuar. “É um reflexo da ausência da má prestação dos serviços de saúde, de alguma forma. Lógico que alguns têm a tendência de usar a Justiça como uma segunda via de acesso”.

Ações como fiscalização dos locais de internação e levantamentos quanto à eficácia desse tipo de tratamento para os dependentes químicos são importantes nesse enfrentamento, conclui o magistrado.

AFUNILANDO AS INTERNAÇÕES

Um exemplo de medida para diminuir o volume de internações pela via judicial é um projeto do núcleo da Defensoria Pública do Espírito Santo de Vila Velha chamado “Integração e Inclusão”, que auxilia a população em relação a questões gerais de transtornos mentais.

De acordo com a defensora pública Geana Cruz, com a tentativa de extrajudicialização, os pedidos de internação pela defensoria no município diminuíram 31% de 2015 a 2017.

A queda foi possível depois da implantação do Protocolo de Atendimento para Internações Compulsórias, em julho de 2016. Nesse protocolo, quem procura a internação para outra pessoa recebe todas as orientações a respeito desse tipo de tratamento.

Depois, o dependente passa por uma uma avaliação médica na rede municipal de Vila Velha. Com o resultado, a Defensoria recomenda ou não ingressar com a ação judicial para a internação.

“As pessoas estão achando que é o melhor caminho, mas na verdade é o último caminho. Você tem que ter a prova de que os meios extra-hospitalares não foram suficientes”, explica a defensora.

Geana Cruz acredita que é preciso haver mais conscientização de todos os agentes do Judiciário, mas chama atenção para a deficiência no investimento em políticas públicas, já que em muitos municípios não há atendimento.

“O juiz pega a batata quente e joga para o estado. Mas também tem alguém que dá um laudo para isso, alguém que também está lucrando com isso. Se esses valores fossem investidos para a Rede de Atenção Psicossocial, poderia haver uma melhora”, opina.

Por Manoela Albuquerque, G1 ES