A inflação voltou a cruzar a marca dos dois dígitos no Brasil em 2021, algo que não acontecia desde 2015.
Conforme os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta terça (11/1), entre janeiro e dezembro do ano passado o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) atingiu 10,06%.
O país está longe de ser o único que enfrenta um problema de aumento generalizado de preços. Nos Estados Unidos, na Europa e na própria América Latina, os bancos centrais – a quem geralmente cabe a tarefa de tentar conter a inflação usando o mecanismo das taxas de juros – viram os indicadores de inflação crescer muito mais do que imaginavam.
No Brasil, contudo, fatores domésticos se somaram aos motores externos e contribuíram para que o país registrasse uma das maiores inflações da região.
Levando em consideração as 11 maiores economias da América Latina, o Brasil só fica atrás de Argentina e Venezuela, dois países que atravessam crises profundas e que vão muito além dos problemas trazidos pela pandemia de covid-19 e suas repercussões. Na Argentina, a inflação atingiu 51,2% nos 12 meses até novembro; na Venezuela, bateu impressionantes 2.700%, conforme a projeção do Fundo Monetário Nacional (FMI) para 2021 fechado.
Quando se incluem os países do Caribe, conforme a base de dados com informações de 34 nações disponibilizada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), além de Argentina e Venezuela, o Brasil só é superado por Cuba, que amarga inflação superior a 70%, e pelo Haiti, mergulhado em crise, que registra índice próximo de 20% no acumulado em 12 meses.
A BBC News Brasil conversou com economistas que acompanham os indicadores da região para entender as razões.
Moedas desvalorizadas e commodities em alta
Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru, todos registraram aumento expressivo dos índices de preços no ano passado.
O Uruguai viu a inflação ceder em relação a 2020, mas ela continua em nível incômodo, acima do limite de tolerância de 7% estabelecido pelo banco central do país.
As exceções são Equador e Bolívia, onde os preços subiram menos de 2% no ano passado, mas que se tratam de casos particulares. Ambos os países têm a economia dolarizada, com um regime de câmbio fixo – uma política que ajuda a conter a inflação, mas que também cobra seu preço, entre eles a exigência de um nível elevado de reservas e o risco de desequilíbrio na balança comercial, com perda de competitividade das exportações.
E fora a dupla, praticamente todos os países da região viram suas moedas perderem valor frente ao dólar em 2021.
Uma parte desse movimento se deveu a fatores internos, como as eleições turbulentas no Chile e a crise política e institucional no Brasil. Não por acaso, o peso chileno foi a moeda que mais perdeu valor na região em 2021 e o real é a moeda há mais tempo depreciada no continente – desde abril de 2020 o dólar se mantém persistente acima de R$ 5 por aqui.
Ao lado das particularidades de cada país, as condições globais também favoreceram a desvalorização das moedas latino americanas. Uma delas foi o aumento dos juros nos Estados Unidos – que se deparou com a necessidade de subir as taxas porque também passou a lidar com um problema de inflação crescente. Com juros maiores nos EUA, os investidores em geral tendem a migrar para mercados considerados mais seguros e tiram dinheiro daqueles considerados mais arriscados, como os emergentes.
Sozinha, a desvalorização cambial por si só costuma pressionar a inflação. No ano passado, contudo, ela se juntou a outro componente, o aumento global dos preços de commodities. Em parte, devido à retomada das atividades em diversas regiões com o avanço da vacinação, petróleo, minério de ferro, soja, milho, carne, laranja, café e outras commodities viram suas cotações se elevarem nas bolsas pelo mundo.
Na avaliação de Felipe Camargo, economista para América Latina da consultoria inglesa Oxford Economics, boa parte da inflação que bateu na América Latina em 2021 veio da combinação entre esses dois fatores.
“É o que estamos chamando [em nossos relatórios] de ‘inflação importada'”, diz o economista.
E são dois os principais canais de transmissão dessa “inflação importada” para os preços internos em cada país. O primeiro, mais intuitivo, é o repasse de custos: o produtor local passa a comprar insumo mais caro (porque precisa importar, por exemplo) e repassa esse custo para o consumidor.
O segundo se dá pelo incentivo que o câmbio gera sobre os exportadores, explica Camargo. Como é financeiramente bastante vantajoso exportar, os produtores muitas vezes preferem vender para fora em vez de domesticamente, o que ajuda a empurrar os preços internos para cima à medida que diminui a oferta
Um outro fator que também concorreu para trazer mais inflação para a América Latina (e muitos outros países) em 2021, acrescenta Alberto Ramos, economista-chefe do banco Goldman Sachs para a América Latina, foram as rupturas nas cadeias de suprimentos globais.
Esse foi outro efeito da retomada mais rápida do que o esperado, traduzido na falta de componentes para a indústria e nos problemas de falta de contêineres para transporte de mercadorias, afetando especialmente os custos industriais.
No Brasil, seca e dólar ainda mais caro
No caso específico do Brasil, ambos os economistas citam um quarto componente que se somou à desvalorização cambial, ao aumento das commodities e aos gargalos de logística: a crise hídrica, que exerceu pressão sobre dois grupos importantes, energia elétrica e alimentos.
Assim, a combinação de fatores acabou gerando o que, na avaliação de Camargo, se desenhou como a pior situação da região. “A inflação do Brasil foi a que mais se desviou da meta”, ressalta, referindo-se à meta de inflação determinada pelo Banco Central, de 3,75%, com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.
“Foi o que mais sofreu choques: a pior depreciação cambial, que veio antes e durou mais, e o maior choque de oferta, por causa da questão da crise hídrica e da energia”, completa.
Olhando especificamente para o câmbio, que é um fator de preocupação para o Brasil, o economista coloca Colômbia e Chile junto ao país na lista dos piores colocados da região.
O peso chileno, ele destaca, sofreu inclusive desvalorização superior à do real em 2021, devido às turbulências de sua corrida eleitoral e às discussões sobre a nova Constituição (no ano passado, os chilenos elegeram os parlamentares que vão redigir a nova Carta, que deve ser apresentada no segundo semestre de 2022).
Ramos, do Goldman Sachs, destaca o papel das questões domésticas no caso brasileiro, que considera fundamentais para entender porque o país teve um dos piores desempenhos da região.
O “ruído político”, fruto das tensões entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, e suas consequências institucionais e na economia, pontua o economista, acabaram criando um “desencantamento” com o Brasil entre os investidores, que passaram a procurar outros mercados e engrossaram a saída de dólares do país.
Esse quadro ajuda a explicar porque a moeda americana passou de R$ 5 em abril de 2020 e praticamente não desceu desse patamar desde então.
Contribuíram ainda para o “desencantamento”, adiciona o economista, a desaceleração forte do crescimento, a falta de reformas e os sinais de descompromisso do governo com as contas públicas, entre eles a PEC dos precatórios e as manobras para driblar o teto de gastos.
“É difícil ver um lado bom hoje”, diz.
Entre outras razões, ele cita as eleições, que se desenham bastante turbulentas e, ao contrário da vizinha Colômbia, que vai escolher o novo presidente já em maio, só serão realizadas em outubro.
Até lá, é pouco provável a retomada de reformas, afirma Ramos. O cenário base é de manutenção de um nível elevado de incerteza, que afeta a decisão dos consumidores de gastar e das empresas de investir.
“Um otimista hoje [em relação ao Brasil] é um pessimista mal informado”, conclui.
// BBC Brasil