Nesta entrevista especial, Sátina Pimenta, psicóloga, fala sobre os cuidados com a saúde mental em tempos tecnológicos, como as novas gerações lidam com as frustrações e a falta de investimentos na área.
Falar sobre a saúde mental e tudo o que ela envolve talvez nunca tenha sido tão importante. Vivemos em um mundo cada vez mais tecnológico, moderno, onde a exposição é ampla e de repercussão imediata.
Diante de uma geração mais “protegida”, por um lado, mas que, ao mesmo tempo, transita em um mundo altamente competitivo onde ser o melhor e se esforçar ao máximo é quase que uma cobrança, como ensinar a ser emocionalmente forte e feliz?
Frustrações, tabus, terapias, estresse, solidão, emprego e desemprego. Como investir na qualidade do acesso à saúde mental? Como torná-la acessível a todos?
Sobre esses e outros questionamentos, a reportagem especial desse domingo (9), conversou com a Sátina Pimenta, Psicóloga Clínica, advogada, professora e coordenadora do Curso de Psicologia da Estácio.
1. Qual a importância da saúde mental?
Sátina Pimenta – De acordo com a OMS a saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua comunidade.
Então perceba… Ela se torna importante primeiro por que nos mostra quem somos em nossas potencialidades e fragilidades, o que nos faz compreender o que podemos, queremos e precisamos fazer no mundo sem que ninguém nos diga isso… Saúde mental para mim é sinônimo de liberdade de ser e de não ser quem ser quer.
2. Como cuidar da saúde mental em tempos tão tecnológicos, onde a exposição é ampla e imediata?
Acredito ser um erro alinharmos a tecnologia como algo preocupante para saúde mental. Veja, não é a tecnologia que é o problema, é a forma como a usamos que é o problema.
Afirmo sempre em consultório que todo o excesso e toda a escassez, não importa sobre o que (pode ser até o Amor) é algo que devemos nos preocupar. A tecnologia inclusive pode auxiliar no processo de saúde mental, hoje, por exemplo, atendo brasileiros que estão do outro lado do mundo utilizando da tecnologia para fazer atendimentos online.
Diversos novos manejos da Psicologia tem utilizado de tecnologia como, por exemplo, o neurofeedback para ações com pessoas neurodivergentes. A aplicativos que são usados por pessoas idosas que os auxiliam na manutenção do processo de memória.
É o que consumimos e como consumimos que nos afeta mentalmente e isto serve para tecnologias e para relacionamentos.
3. Por que é tão difícil hoje em dia para as novas gerações lidarem com as frustrações?
A geração de hoje é uma geração mega protegida. Na lógica das teorias transgeracionais, você verá que as gerações anteriores passaram por muitas coisas ruins e se tornaram mais apegadas a tudo (tanto material – casa e trabalho; quanto relacional- o número de divórcios era bem menor que hoje).
A geração de hoje foi protegida para não passar pelas mesmas coisas. Meus pais sempre falam que eles quiseram me dar o que eles não podiam ter e ainda afirmam que por isto eu TENHO que ser melhor do que eles foram.
Pronto, é uma geração protegida, mas que, ao mesmo tempo, tem que dar o seu máximo no mundo competitivo onde todo mundo tem que ser o máximo. É impossível não ser frustrado se todo mundo é midiaticamente perfeito.
Ah, agora um movimento low profile onde há o incentivo das pessoas saírem das redes sociais que é entendido por especialistas como o local de maior comparação que existe. A comparação é geradora da frustração, porém é uma comparação de um mundo de mentira.
Viver a vida real talvez seja menos frustrante.
4. Como ajudar as novas gerações a serem fortes e felizes emocionalmente?Felicidade é um termo mutável socialmente, culturalmente e cronologicamente. Em um documentário chamado Humans, que eu passo para os meus alunos, tem uma senhora Maria que diz que a felicidade dela era ter um chinelo havaianas.
As gerações de hoje, como afirma Bauman, é uma geração de modernidade liquida, ou seja, tudo para eles é efêmero, portanto como nada é permanente o tempo inteiro eles estão buscando coisas que os deixam “felizes”, ou que os deixam “mais felizes” do que já estão.
Assim sendo, pensar na felicidade desta geração é pensar no movimento constante de mudanças e recomeços, eles estão sempre iniciando coisas novas para sentir coisas novas.
Isto é bacana, pois diferente de outras gerações eles são desbravadores, mas é preocupante, pois não sentem nada por completo, quando o mínimo de frustração acontece ou quando algo melhor lhes é oferecido eles abandonam o caminho que estão seguindo e partem para outro.
O sentimento de pertencimento não acontece e no final o “cidadão do mundo” se torna cidadão de lugar nenhum, nem de si mesmo.
5. Economia, solidão, estresse, violência… São gatilhos que deflagraram uma “crise” de saúde mental no Brasil e no mundo?
Estudos indicam que muitas coisas afetam a saúde mental. E como eu disse no início, a saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades.
Se eu estou passando fome, eu não consigo ter saúde mental, se eu sou agredida, eu não consigo ter saúde mental, se a minha casa pode cair a qualquer momento e por isto eu nem dormir, durmo, eu não tenho saúde mental.
É importante deixar claro que para ter saúde mental eu preciso ter o mínimo necessário, e utilizando um pouco da minha formação em Direito, um doutrinador chamado Ingo Wolfgang Sarlet, deixa claro que sem o mínimo existencial eu não tenho dignidade. Você já viu uma pessoa que não se vê digno de algo se sentir bem?
O mundo está doente porque não garante o mínimo para as pessoas. Trabalhadores que têm registrado em suas carteiras de trabalho que trabalham oito horas por dia, mas não conseguem deixar para almoçar com sua família, porque as demandas não param e tem medo de não respondê-las e ser demitido, não é tratado com dignidade.
6. Ao falarmos em grandes tragédias (como a no Rio Grande do Sul, Mimoso do Sul, pandemias), de que forma os órgãos públicos devem assistir às pessoas atingidas?
Há um debate muito importante no Conselho de Psicologia sobre isto. Devido ao número de tragédias naturais que o Brasil vem sofrendo, o conselho federal oportunizou diversas formações para os profissionais atuarem nestas situações.
O atendimento profissional psicológico só pode ser ofertado por nos profissionais não só formados, mas capacitados para aquele atendimento, porém o acolhimento pode ser ofertado de diversas formas.
Vou voltar a questão anterior- é preciso primeiro ofertar o básico a estas pessoas para que a sensação mínima de segurança paire sobre elas.
Após é importante um acolhimento da dor (isto qualquer pessoa com empatia pode fazer), mas quando formos trabalhar o luto (material, emocional, físico, familiar) precisamos que a governabilidade oferte profissionais capacitados para isto, pois é preciso a compreensão de cada sujeito, sua história e sua nova história. As técnicas da psicologia são grandes mediadoras destas compreensões.
A proposta de atendimentos individuais em locais apropriados (ou preparados) ou ainda a proposta de atendimentos psicológicos em grupo é de grande valia neste processo.
7. Faltam investimentos na área da saúde mental?
Na saúde como um todo, na verdade. Porém, a saúde mental sempre foi entendida como o patinho feio que precisa ser escondido da sociedade. Afinal por muito tempo não se falava de saúde mental e sim de doença mental.
Hoje no mundo pós pandêmico é que começamos a entender de forma menos pejorativa que as questões de saúde mental não precisam ser escondidas, muito pelo contrário, quanto mais as escondemos mais elas evoluem, pois não tem tratamento.
Antes as pessoas chegavam aos hospitais em plena crise ou o dito “surto”, hoje conseguimos dizer “estou ansioso”, “estou com depressão”, “preciso ir no psicólogo”, sem ser taxado de louco.
Quando então, com a Reforma Psiquiátrica, começamos a entender que quanto mais escondemos, menos tratamos, menos incluímos e menos cuidamos (não só do paciente identificado/doente, mas também de sua família e entorno social) começamos então a investir mais na saúde mental.
Uma campanha que mostra isso é do Janeiro Branco. Mas ela só se tornou uma campanha realmente em 2023 com a lei 14556. Isto porque o movimento da reforma psiquiátrica tem início em 1989 e teve a lei promulgada só em 2001 (Lei 10216).
8. Quais os principais desafios enfrentados na saúde mental?
Primeiro pararmos que estigmatizar a doença mental (final já dizia o ditado “de médico e louco todo mundo tem um pouco”), segundo entendermos o que o bem-estar é algo global (corpo, mente, social, econômico, sanitário, cultural, etc) e por isto todos os setores da sociedade precisam se movimentar em prol disto.
Terceiro é uma questão mais pessoal: assumir fraquezas em um mundo que quer criar super-humanos é um desafio, mas fica a dica, se eu não as reconheço, eu não cuido e não melhoro, continuando fraco (ou ainda… deixando de existir).
9. Como a doença mental afeta a sociedade?
De diversas maneiras. Na estigmatização, na exclusão, na não aceitação, na não compreensão (que gera ignorância)! Mas como disse acima, o mais impactante para mim disto tudo é o não cuidado.
Vou te dar um exemplo impactante! Pedofilia é uma doença, onde o sujeito tem como objeto de desejo crianças.
O ato de pedofilia no direito é punido. Mas se o pedófilo nunca tiver ato nenhum ele não será punido. Não há no Brasil tratamento para pedofilia, se um pedófilo quiser conter seus impulsos ele terá que pagar para isto e ainda dar a “sorte” de não ser exortado pelo seu “cuidador”.
Tudo isto, pois a sociedade o vê como um monstro. O pedófilo sem o tratamento consequentemente se torna um abusador. A ausência então do tratamento pelo preconceito e pelo estigma vai me ofertar mais uma criança traumatizada.
10. O que pode ser feito para melhorar a qualidade da saúde mental das pessoas? Ser feliz é difícil?
Assumir que saúde mental é estado de bem-estar completo e multidimensional e ofertar o mínimo a todos para termos dignidade. Isso depende de políticas públicas e da modificação cultural de uma sociedade que finge ser sã quando, na verdade, não é. E ser feliz é uma sátira.
A felicidade não existe em sua plenitude! Mas por não entendermos isso não damos valor aos diversos momentos simples e felizes que vivemos no dia a dia e achamos que a vida não é boa.
//Folha Vitória