Grupo de historiadores cria projeto para questionar estátuas e locais dedicados a traficantes de escravizados
Professores de universidades públicas da Bahia se juntaram e criaram o projeto SSA Escravista, responsável por questionar homenagens controversas na cidade.
Redação FM News
Historiadores e professores de universidades públicas da Bahia se juntaram e criaram o projeto SSA Escravista, responsável por questionar homenagens controversas na cidade que lembram a memória de poderosos senhores e traficantes de pessoas escravizadas no século 19 e 20.
“O objetivo do projeto é problematizar essas representações, dessas pessoas, que simbolizavam a continuidade de um comércio que levou séculos e que sacrificou a vida de, no caso do Brasil, cerca de 5 milhões de africanos”, disse a doutora em história e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Luciana Brito contou que um dos maiores objetivos do projeto é trazer para o debate público memórias da população negra, que foram esquecidas ao longo do processo de modernização da cidade.
“O objetivo se alinha a outros debates acontecidos no mundo, no sentido do papel das estátuas, das homenagens públicas e representações de grandes escravistas, na memória da escravidão, na memória em que se cria nas sociedades americanas e europeias sobre a escravidão”, disse.
“Nós sabemos, baseados em pesquisa historiográficas, que paradoxalmente, os grandes senhores de escravizados, os grandes traficantes de escravizados, ao mesmo tempo que eram envolvidos naquilo que eram chamados de infame comércio, eles criavam, paralelamente, e tinham dinheiro para isso, uma imagem de bom cristão, de grande filantropo, para contrabalançar aquela má reputação que eles tinham como senhores de escravos”.
Segundo a doutora em história, muitos traficantes brasileiros tinham dinheiro e iam até à costa da África negociar pessoas.
“A memória que ficou para a posterioridade, eles conseguiram esse objetivo, foi aquela de um homem público, benevolente, que tinha dinheiro e prestígio, por serem homens de elite, de financiar obras na Santa Casa de Misericórdia, tinham condições de criar hospitais, como é o caso do Hospital Santa Isabel”, contou.
Os professores contam que, para criação desses hospitais, os senhores de escravizados colocavam contrapartidas. As unidades tinham espaços de homenagens para eles. No caso do Hospital Santa Isabel, um busto do Conde Pereira Marinho.
“A estátua ainda está em uma representação, na imagem dele, de corpo inteiro, que tem criancinhas, inclusive crianças negras aos seus pés”, disse.
Outro objetivo do SSA Escravista é desmentir histórias que são contadas ao longo das décadas. A historiadora Luciana Brito categorizou a história de que o português não botou os pés na África como “veementemente falsa”.
“A história de que o português nem botou os pés na África é veementemente falsa e esse é um outro objetivo do projeto, é uma preocupação nossa deixar para a sociedade um conhecimento histórico que é baseado em documentos, fontes e evidências. Assim a gente está combatendo qualquer narrativa irresponsável sobre o que foi o tráfico de africanos no Brasil”.
Os historiadores contam que o Brasil foi responsável pela saída de 40% dos africanos que foram retirados do continente deles. O maior país escravista das Américas.
“Todos os profissionais envolvidos nessa pesquisa, nesse projeto, são professoras e professores de universidade pública, então nada mais justo do que nós contribuirmos com a sociedade, dando o nosso retorno social com o investimento que foi feito na nossa formação como historiador e historiadora”, disse.
A ideia do projeto foi pensada após a ascensão do debate nos Estados Unidos sobre a queda de estátuas e homenagens a confederados, que eram sulistas e escravistas e a morte do americano negro George Floyd, de 40 anos.
“Depois desse debate, nós achamos que havia um grande silêncio sobre esses escravistas na cidade de Salvador, que foi um dos maiores portos de chegadas de africanos durante boa parte do século 19, oscilaram entre Salvador e Rio de Janeiro”, contou
“Nós sabemos que houve um grande processo de ‘europeização’ da cidade no século 20, de apagamento das memórias africanas. Caso não fosse as próprias populações negras, sobretudo aquelas ligadas a religiões de matrizes africanas, essas memórias seriam apagadas”.
Ações da SSA Escravista
O SSA Escravista atua com um site, onde ele transforma livros densos e estudos científicos feitos em universidades, em textos menores e com linguagem mais fácil entendimento.
“É transformar o material que tem uma densidade muito grande, porque são livros, teses, dissertações, em textos de grande circulação. Com linguagem mais acessível, textos menores, textos de fáceis leituras e o site está aí para isso”, disse.
O grupo também pretende trazer a discussão para um debate público, através da imprensa e de veículos de comunicação.
O último objetivo é transformar esses textos em materiais que sejam usados em escolas públicas e particulares de Salvador.
“Nós iniciamos com Salvador e é muito importante que o professor de escola pública e privada, atendendo a lei 11.645, possa usar esse material que nós estamos produzindo como material didático”, disse Luciana Brito.
“Tanto o site, quanto as fotografias, quanto os pequenos textos para grandes circulações, que nós estamos elaborando. Tudo isso está sendo muito pensado ainda, gestado entre nós, porque por exemplo, o site somente não é um material didático em si. A gente sabe, sobretudo nas escolas públicas, é muito difícil acessar site”.
Para isso, o grupo quer produzir material didático, para provocar a reflexão na sociedade sobre o quanto essa desigualdade determinou o que seria lembrado e esquecido em Salvador.
O SSA Escravista é formado por 23 professores que se dividem entre Conselho Cientifico, Textos e Equipe Técnica. Eles estudaram e ensinam na Universidade Federal da Bahia (Ufba), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).