Uma equipe de cientistas liderada por quatro pesquisadoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desenvolveu um modelo de pesquisa em camundongos que permitirá estudar pela primeira vez os potenciais sintomas de longo prazo da infecção congênita por zika.
O novo estudo foi publicado nesta quarta-feira, 6, na revista científica Science Translational Medicine, e confirmou que a infecção por zika pode mesmo causar problemas posteriores, mesmo nas crianças que não nasceram com anomalias neurológicas mais graves como a microcefalia. A pesquisa também revelou que uma droga já aprovada para uso comercial mostrou eficácia contra alguns dos sintomas tardios da doença.
Estima-se que de 1% a 10% dos bebês infectados pelo vírus durante a gestação nascem com microcefalia, mas de acordo com os autores da nova pesquisa, as demais crianças, embora tenham nascido com cabeça de tamanho normal, desenvolveram mais tarde alguns dos sintomas associados à zika congênita, como perda de peso, déficit cognitivo e problemas de coordenação motora.
Mas os bebês nascidos durante a epidemia ainda têm menos de três anos de idade e, por isso, até agora não foi possível estudar o impacto de longo prazo da doença, de acordo com uma das autoras da nova pesquisa, a neurocientista Julia Clarke da Faculdade de Farmácia da UFRJ.
“Depois da epidemia no Brasil, falou-se muito de microcefalia, mas aos poucos foi ficando claro que essa é apenas uma das várias alterações que a zika pode causar nos bebês expostos ao vírus. Um pequeno número de crianças que nasceram como perímetro encefálico normal foram examinadas mais tarde e apresentaram algumas dessas alterações, incluindo crises epiléticas”, disse Julia ao Estado.
Além de Julia, formaram a equipe que liderou a pesquisa a neurocientista Cláudia Figueiredo e as virologistas Andrea Da Poian e Iranaia Assunção-Miranda, todas da UFRJ. A primeira autora do artigo é Isis Nem de Oliveira Souza, aluna de doutorado sob a orientação de Julia na UFRJ. Também participaram do estudo cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Todos os autores são brasileiros.
“O objetivo do nosso estudo é entender que consequências a epidemia que tivemos no Brasil poderá ter a longo praz, já que milhões de crianças foram expostas ao vírus durante a gestação, embora não tenham nascido com microcefalia”, explicou a pesquisadora.
Utilizando o novo modelo, os cientistas observaram que camundongos infectados logo após o nascimento apresentaram sintomas precoces e tardios da infecção, incluindo perda de peso – que não é recuperada na idade adulta -, déficit cognitivo e problemas persistentes na coordenação motora.
A memória e a sociabilidade dos camundongos adultos também foi afetada – algo que, segundo os autores do novo estudo, pode ter relação com observações feitas por outros cientistas de que a exposição ao vírus logo após o nascimento pode estar associada ao desenvolvimento futuro de autismo e esquizofrenia.
“A literatura científica mostra que a infecção por outros vírus, como o da gripe, tem associação com o desenvolvimento de doenças como o autismo e a esquizofrenia na adolescência. Esse impacto na memória e na sociabilidade dos camundongos indica que a zika também pode ter esse tipo de sequela”, afirmou Julia.
Os camundongos desenvolvidos pelos cientistas servem como um modelo para a infecção neonatal. Logo que nascem, os animais infectados com o vírus apresentam um desenvolvimento cerebral que passa por fases semelhantes ao do desenvolvimento do cérebro de uma criança.
“O cérebro do camundongo é diferente, mas seu desenvolvimento mimetiza uma infecção que corresponderia, em humanos, à que ocorre no segundo e no terceiro trimestres de gestação. A maior parte das infecções associadas à microcefalia ocorreram no primeiro trimestre de gravidez. Com esse modelo, podemos estudar as consequências que a infecção poderia ter ao longo da vida das crianças que não tiveram microcefalia”, explicou a neurocientista.
Segundo a pesquisadora, 90% dos camundongos estudados apresentaram crises epiléticas que, no entanto, cessaram na idade adulta. “Ainda assim, quando administramos nesses animais uma droga que estimula as convulsões, eles se mostraram mais suscetíveis que os camundongos controle a novas crises epiléticas. Isso significa que as crianças que aparentemente nasceram sem sequelas, podem ficar mais suscetíveis a crises epiléticas caso sejam expostas a estímulos que as desencadeiem”, disse Júlia.
Muitas das consequências futuras da infecção poderiam ser prevenidas se fossem melhor compreendidas, segundo a cientista. “É possível que vejamos um aumento do número de casos de sintomas de longo prazo nos próximos anos. Pretendemos utilizar nosso modelo para testar formas de prevenção e de intervenção para evitar que essas crianças tenham sequelas no futuro”, afirmou.
Os cientistas já começaram a utilizaram o novo modelo para testar fármacos que possam inibir os efeitos a longo prazo da infecção. O grupo utilizou o infliximab – uma droga que inibe uma molécula relacionada à inflamação – que já foi aprovada pela FDA, a agência reguladora americana e é utilizada para tratar doenças autoimunes, artrite reumatóide e outros quadros inflamatórios. O medicamento pode ser utilizado durante a gravidez.
“Observamos que a aplicação desse fármaco reduziu em cerca de 50% o número de crises epiléticas espontâneas dos animais adolescentes e também preveniu as crises estimuladas por drogas nos animais adultos. Porém, o infliximab não evitou a perda cognitiva e os problemas motores. Ele amenizou as crises epiléticas, mas não foi capaz de reverter todo o quadro de sintomas”, disse Júlia.
Por: Agência Estado