Trabalhadores baianos que foram resgatados em condições similares à escravidão em vinícolas na Serra do Rio Grande do Sul chegaram nesta segunda-feira (27) à Bahia. Dos 207 resgatados, 198 são da Bahia. 194 optaram por retornar e quatro outros preferiram ficar no Rio Grande do Sul.
A Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) informou no final de semana que já estava se preparando para o acolhimento aos baianos resgatados. Eles chegam em Feira de Santana, Lauro de Freitas, Serrinha e Salvador, e a partir dessas cidades vão retornar para seus municípios de origem.
O secretário de Justiça e Direitos Humanos, Felipe Freitas, conversou com o colega gaúcho, Mateus Wesp, na sexta (24), colocando o governo baiano à disposição para ajudar na assistência aos trabalhadores.
“A ideia é incluir as pessoas em programas de trabalho, garantir a inclusão delas nos projetos sociais dos municípios e, se houver demanda de saúde física ou mental, providenciarmos atendimentos”, diz Felipe Freitas.
“As equipes vão realizar a triagem e dar encaminhamento caso a caso”, acrescenta a superintendente de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos da SJDH, Trícia Calmon.
Além dos 198 baianos resgatados, estavam entre os trabalhadores escravizados nove gaúchos, que voltaram para suas cidades de origem.
Fuga e resgate
Três trabalhadores chegam ofegantes ao posto da Policia Rodoviária Federal (PRF) de Bento Gonçalves, cidade situada na Região Serrana do Rio Grande do Sul. O que eles relataram aos agentes levou à descoberta de um galpão com cerca de 240 trabalhadores em condições análogas à escravidão, grande parte da Bahia, que foram resgatados no município vizinho de Caxias do Sul, polo produtor de uvas e vinhos finos das serras gaúchas.
Ao divulgar o caso na sexta-feira (24), a PRF não revelou as identidades das vítimas, mas confirmou que maioria veio de cidades do interior baiano. Após o resgate, os trabalhadores contaram para aos policiais que foram contratados para trabalhar em vinícolas, colhendo uvas em Caxias do Sul. Foi garantido ao grupo salário de R$ 3 mil, acomodação e alimentação. Na chegada, contudo, encontraram condições desumanas.
De acordo com os relatos, os trabalhadores foram colocados em um alojamento em condições precárias, mal iluminado e com ventilação escassa. Durante as refeições, recebiam alimentação estragada. Os salários era pagos com atraso, e as vítimas contaram que eram coagidas a permanecer no local, sob pena de pagamento de multa por quebra do contrato de trabalho.
Havia longas jornadas de serviço e também castigos físicos, narraram as vítimas. Uma arma de choque e um spray de pimenta foram apreendidos no local. A PRF divulgou um vídeo nas redes sociais do momento em que os trabalhadores foram resgatados. Uma das vítimas descreveu as condições em que vivia.
Bastante conhecidas no mercado, as três vinícolas para quem os trabalhadores prestavam serviços terceirizados de colheita – Aurora, Garibaldi e Salton – se disseram surpreendidas com o resgate e afirmaram que não compactuam com as práticas flagradas pela PRF.
A gente saia 4h e ia para as fazendas trabalhar catando uva. Voltava 22h, 23h. O carro largava a gente lá, para ficar esperando [ele voltar], e tratavam a gente como se fôssemos bicho. Pegavam a quentinhas com a comida azeda e davam para a gente comer. Diziam: ‘vocês têm que comer isso mesmo, porque baiano bom é baiano morto’. A gente é pai de família, trabalha, contou uma das vítimas, sob forte indignação
Outro trabalhador contou ao agentes rodoviários federais que direitos básicos eram ignorados. “Não respeitavam quando a gente ficava doente e tratavam a gente que nem cachorro. Viemos para trabalhar e nos matar, porque a gente saia cedo e voltava bem tarde”, desabafou.
Escapada de trio deu origem a cerco da PRF
O crime só foi descoberto por que três trabalhadores conseguiram fugir. Foram eles que alertaram os agentes da PRF de Bento Gonçalves que viviam em regime semelhante à escravidão e que foram mantidos contra a vontade no alojamento. Os policiais acionaram outras instituições e decidiram montar uma operação.
O flagrante aconteceu na quarta-feira à noite, durante ação da PFR em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Polícia Federal. O responsável pela empresa, que possui contratos com vinícolas da região, foi preso e levado para a PF de Caxias do Sul.
Depois, o suspeito foi transferido para um presídio em Bento Gonçalves, mas acabou liberado após pagar fiança e R$ 40 mil. O nome dele não foi divulgado. Também baiano, ele tem 45 anos e é natural de Valente, no Nordeste do estado.
Promessas viraram pesadelo e cárcere privado
Em entrevista ao portal g1, o gerente regional do Ministério do Trabalho e Emprego no Rio Grande do Sul, Vanius Corte, explicou que muitos trabalhadores não receberam o salário prometido e tinham que comprar ‘fiado’ no mercadinho local. O estabelecimento praticava preços abusivos. Cobrava, por exemplo, R$ 22 em um quilo de feijão.
“O empregado ficava sempre devendo e não conseguia sair sem pagar a conta, não recebia o salário e ficava nessa situação, de ficar preso no local por conta da dívida. Isso foi uma das coisas que caracterizou o trabalho escravo, além dessa história das agressões. Nossa fiscalização apreendeu no local uma máquina de choque elétrico e spray de pimenta que era usado contra os empregados que reclamavam da situação”, explicou.
O MTE informou que irá analisar individualmente os direitos trabalhistas de cada trabalhador para buscar a devida compensação. Somente em, 2.575 pessoas foram resgatadas de situações análogas à escravidão contemporânea, 82 delas em território baiano. Os dados são do Sindicato dos Auditores Fiscais do Estado da Bahia (Safiteba). Ao todo, desde a formação dos grupos de fiscalização, em 1995, o número passa de 60 mil.
Relembre casos de trabalho escravo na Bahia que tiveram repercussão
7 de dezembro de 2022 – Uma mulher de 59 anos foi resgatada pela Auditoria Fiscal do Trabalho, em São Gonçalo dos Campos, a poucos quilômetros de Feira de Santana. Ela residia no local de trabalho há quase 35 anos, fazia todo o serviço doméstico, sem nunca ter recebido salário nem qualquer outro direito trabalhista.
12 de agosto de 2022 – Uma mulher foi resgatada de um trabalho abusivo na cidade de Santa Teresinha, no Recôncavo baiano. Ela trabalhava como empregada doméstica, porém, em condições análogas à de escravidão, há 12 anos, em uma casa que abrigava um bar e também era abrigo para idosos;
18 de julho de 2022 – A inspeção do trabalho na Bahia realizou ações fiscais de combate ao trabalho análogo ao de escravo em 37 empregadores em todo o estado. Dos 400 trabalhadores alcançados, mais da metade se encontravam sem registro, e 25 foram resgatados no município de Barra do Choça, no Sul da Bahia.
Março de 2021- Madalena Santiago da Silva, 62 anos, foi resgatada depois de trabalhar 45 anos como empregada doméstica sem receber salários em Lauro de Freitas, na região metropolitana. Ela teve os dados usados para contratar empréstimos, sofreu maus-tratos e injúria racial. A Justiça do Trabalho bloqueou R$ 1 milhão em bens da família para pagamento de danos morais e verbas rescisórias.
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