Para a aposentada Geni Aparecida de Oliveira, a brincadeira terminou cedo e o trabalho começou depressa. Aos 9 anos, virou empregada doméstica e não parou mais de se esfalfar em serviços pesados: passou 30 de seus 57 anos como faxineira e outros 10 como metalúrgica. Sua filha, Natalie Flaviane de Moura, de 24 anos, conseguiu adiar a entrada no mercado de trabalho, mas já trabalha há cinco anos como atendente de telemarketing, uma ocupação que exige pouca qualificação.
Mãe e filha são negras, o grupo populacional no Brasil que ocupa a maioria das vagas em serviços braçais ou que exigem pouco preparo, como operador de telemarketing, vigilante e cortador de cana-de-açúcar. No grupo das profissões altamente qualificadas, como as de engenheiro de computação e professor medicina, a maioria dos trabalhadores é branca. Isso é o que aponta um levantamento do G1 feito a partir de dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego.
A discrepância, afirmam especialistas consultados pelo G1, é fruto do abismo social que distancia brancos e negros da educação às oportunidades de ascensão profissional. Ainda de acordo com especialistas, esses são ecos da escravidão, que perdurou durante anos no Brasil e foi encerrada com a Lei Áurea, que completa 130 anos neste domingo (13).
Profissões por cor
A equipe de reportagem analisou os vínculos empregatícios inscritos em mais de 2,5 mil ocupações. Os dados, referentes a 2016, são os mais recentes coletados pelo MTE a partir de informações fornecidas pelas companhias.
Dos 46 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 34 milhões declaravam cor e raça em 2016 – ainda havia 8,5 milhões que não foram classificados. A análise considerou apenas os declarantes. Dentre eles, pretos e pardos, que formam o grupo dos negros, somavam 14,1 milhões, enquanto brancos eram 19,4 milhões, amarelos, 274 mil, e indígenas, 75 mil.
Menos educação, mais trabalho
O que explica essa situação, diz Guillermo Etkin, coordenador da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI-BA), “são basicamente dois aspectos: a escolaridade e a colocação [precoce] no mercado de trabalho, já que negros começam a trabalhar mais cedo, o que afeta na escolaridade”.
Dona Geni é exemplo disso. Não só começou a labutar ainda criança, como durante boa parte de sua vida adulta ainda mantinha uma educação básica incompleta — até os 34 anos só tinha estudado até a 4ª série.
Em 2016, negros ocupavam 45,2% das vagas para ensino fundamental, 44,7% dos que pediam ensino médio, ainda que incompleto, mas apenas 27% dos empregos que exigiam ensino superior no Brasil.
“A população negra possui os piores indicadores sociais, os menores índices de escolarização, de rendimentos e de acesso a bens e serviços, assim como os maiores índices de mortalidade precoce, quando comparados com a população branca. Esses dados do MTE apontam para uma das faces da desigualdade social brasileira: a divisão racial do trabalho altamente resiliente”, afirma o pesquisador Antônio Teixeira, coordenador de gênero, raça e estudos geracionais do Ipea.
Leila Gonzaga, pesquisadora da Fundação SEADE (Sistema Educacional de Análise de Dados), reforça que o abismo no mercado de trabalho vai além do baixo acesso às salas de aula. “A discussão da desigualdade começa com nossa História. Fora isso, tem a ascensão na carreira e a questão do preconceito. A ascensão do negro é muito diferente do não negro em uma empresa”, comenta.
A desigualdade entre brancos e negros persiste pelo Brasil afora, mas pode ser percebida de maneiras diferentes, pontuam os especialistas.
Na região metropolitana de São Paulo, o maior mercado de trabalho do país, negros compunham 38,3% da força de trabalho em 2016. Quando a vaga exigia ensino superior, eles até eram a maioria em tarefas de execução ou de apoio, mas ficavam atrás de brancos quando os cargos eram de direção, gerência e planejamento, aponta dados do SEADE.
Outra diferença é o salário. Em São Paulo, homens negros recebiam 67% do rendimento de um homem branco, enquanto mulheres negras recebiam ainda menos, 56,5%.
A desigualdade está presente até em regiões em que trabalhadores negros ocupam boa parte dos postos de trabalho, inclusive os de gerência. Na Bahia, 82% dos empregos são ocupados por negros, que também ocupam dois terços dos cargos de gerência. Ainda assim, negros tinham remuneração média de R$ 1.870, 69% dos R$ 2.687 recebidos, em médio, por brancos.
“Mesmo em estado ou região em que a população negra predomina, ela não consegue manter salários melhores”, diz Etkin, da SEI-BA.
A distorção permanece na análise por atividade econômica. Os negros recebem uma parcela da renda de brancos em todas as atividades econômicas, do comércio, em que a fatia é de 84%, aos serviços industriais de utilidade pública, em que recebem 54,7%.
Escravidão e racismo
Segundo os especialistas ouvidos pelo G1, essa desigualdade nasceu nos tempos de escravidão no Brasil, mas só tem condições de influenciar a dinâmica da sociedade brasileira ainda hoje devido ao racismo.
“A gente ainda guarda um retrato muito parecido com esse período pré-emancipação, pré-Lei Áurea nesse sentido de que a sociedade continua delegando as ocupações de maior exploração e de menor remuneração à população negra”, diz Etkin.
“Se a gente for falar de desigualdade, é óbvio que temos de analisar o período da escravidão, mas se concentrar só nisso é equivocado”, disse Marcelo Paixão, doutor em sociologia e professor assistente da Universidade de Austin especializado em estudos de raça e gênero. Ele lembra que os imigrantes europeus chegaram ao Brasil sem qualificação e trabalharam na agricultura, mas seus descendentes não essa condição não permaneceu para seus descendentes.
“O que perdura desde a escravidão é o racismo. Durante a escravidão, era considerado natural que as pessoas de pele escura fossem escravas. Não existe mais a figura do escravo, mas existem as posições mal remuneradas.”
Antônio Teixeira, pesquisador do Ipea, concorda. “Localizar esse problema no passado desresponsabiliza as gerações atuais pelo que elas continuam reproduzindo. A sociedade brasileira é profundamente racista em seu cotidiano.”
Geni conta que trabalhava limpando a escola ao lado de outras duas colegas brancas. Apesar de as três ocuparem a mesma função, os afazeres mais desagradáveis eram destinados a ela. Em duas oportunidades, alunos defecaram sobre a mesa de professores. Nas duas vezes, a diretora esperou Geni chegar para pedir que ela limpasse, ainda que suas colegas já estivessem trabalhando.
“Na última vez, eu chorei muito e falei que não haveria uma terceira, porque eu iria embora”, diz. “Não era por causa da minha condição de trabalho, mas por causa da minha cor”.
A filha dela, Natalie, também já enfrentou a discriminação racial. Quando estagiava em um fórum de São Paulo, ainda quando cursava o ensino médio, uma advogada se recusou a ser atendida por ela. “Ela disse que uma pessoa de cor já bastava [seu cliente].
“Dá muita vergonha. Não é algo que acontece quando ninguém está olhando. É na frente de todo mundo e ninguém fala nada.”
Distâncias menores
Os dados do Ministério do Trabalho mostram que, pelo menos no acesso a vagas com maior grau de instrução, a distância, ainda grande, entre negros e brancos tem se encurtado. Entre 2008 e 2016, aumentou em dez pontos percentuais a fatia de negros em vagas que pedem ensino superior.
Para muitos negros, conseguir um diploma de graduação exige um esforço imenso e não significa imediata ascensão na carreira. Dona Geni é um desses casos. Ela só foi concluir o ensino médio aos 40. Estudou com as mesmas crianças da escola em que trabalhava. À noite, depois de o expediente acabar, ela largava o avental, pegava os livros e sentava em uma das cadeiras que havia limpado durante o dia. Mas ela não parou a
“Para não perder tudo aquilo que eu tinha conquistado, eu comecei a estudar e fiz o ENEM. Tirei uma nota boa. Conseguiu Prouni e fiz Letras.” Hoje, aos 57 anos, ela faz uma pós-graduação em metodologia do ensino da língua portuguesa e literatura.
Rosana Aparecida da Silva, de 53 anos, é há 26 inspetora de alunos, um concurso público para formados no ensino médio. Manter as contas de casa pagas não é tarefa fácil e sempre foi uma prioridade em relação aos estudos. Tanto que ela só conseguiu concluir a graduação em gestão pública há três anos.
“A gente só tem oportunidade de trabalhar, mas não de estudar. Isso vem lá de trás. Tinha que andar com a carteira de trabalho no bolso porque, se a polícia parar, negro que não trabalha é vagabundo.”
A colega Danila de Abreu Virche Toledo, de 38 anos, teve de interromper a graduação de Fisioterapia aos 24 anos quando perdeu o emprego em um call center. “Tive que largar para ajudar em casa.”
Depois disso vieram o casamento e a gravidez. Com ainda menos dinheiro e pouco tempo, teve de adiar o retorno aos livros por mais de 10 anos. Só foi no começo de 2018 que voltou às salas de aula, mas em uma graduação diferente. Dessa vez, ela optou por contabilidade.
“Eu amo estudar. Se pudesse, terminava essa [faculdade] e já emendava em outra.”
Por: Helton Simões Gomes, G1