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Atraso para vacinar crianças é ‘negação inacreditável da ciência’ diante de aumento de casos de covid, diz médico da Fiocruz

 

No início de dezembro passado, os atendimentos a casos de covid-19 eram raros ou, em certos dias, inexistentes na rotina do pediatra e infectologista Márcio Nehab.

O que poderia ser um indicativo de melhora da pandemia, hoje é visto por ele como a fase que antecedeu um período de “subida assustadora de casos”.

“De duas semanas pra cá, a situação piorou muito. Ontem (segunda-feira), por exemplo, foi o dia em que mais fiz pedidos de covid-19 desde o início da pandemia. Tem sido assim nos últimos dias. Nunca fiz tantos pedidos de exames na vida”, comenta Nehab, que é do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FioCruz).

O pediatra, que trabalha em hospitais da rede pública e privada do Rio de Janeiro, atende crianças de diferentes idades. Em casos suspeitos de covid-19, ele solicita exames para os pacientes e seus familiares. E nas últimas semanas, Nehab tem notado uma particularidade: praticamente todos os membros da família testam positivo para a doença.

“Nas variantes anteriores, a taxa de transmissão entre os familiares já era alta, mas na ômicron tem sido maior ainda. É uma variante muito mais transmissível”, diz o especialista à BBC News Brasil.

Ele conta que fez cerca de 20 pedidos de exames de covid-19, incluindo as crianças e seus familiares, na última segunda-feira (03/01), enquanto nos períodos anteriores nunca havia solicitado mais de 15, nem mesmo no auge da pandemia em março de 2021. Esse aumento de registros da doença, conta Nehab, também tem sido notado por seus colegas de profissão.

Em meio ao atual cenário, Nehab classifica como “completa negação da ciência” a conduta do governo federal em relação à vacinação das crianças contra a covid-19.

Apesar de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter autorizado a aplicação da vacina da Pfizer em crianças de 5 a 11 anos em 16 de dezembro, o governo federal decidiu fazer uma consulta pública sobre o tema e encerrou as discussões sobre o tema somente nesta quarta-feira (05/01), ao divulgar detalhes sobre a imunização para esse grupo.

 

O aumento de casos de covid-19

 

Assim como tem ocorrido em diferentes regiões do mundo, o Brasil sofre com o avanço da ômicron. Pelo que tem sido observado em outros países, a variante causa quadros mais leves ou até assintomáticos, porém é mais transmissível.

No Brasil, as cenas de filas à espera de atendimento médico por suspeita de covid-19 voltaram a ser comuns. A busca por exames para a doença tem sido cada vez maior nos últimos dias e os resultados positivos aumentaram. Há também mais internações quando comparado aos últimos meses de 2021, conforme relatos de profissionais de saúde.

Em meio ao atual cenário, o país vive dificuldades para dimensionar a real situação da pandemia. Com testes insuficientes e com dificuldades de divulgação de dados em muitos municípios, especialistas têm afirmado que não é possível quantificar a real situação da pandemia no Brasil nos últimos dias.

É possível avaliar parte do cenário por meio dos dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A média móvel de casos (que analisa os números dos últimos sete dias) passou a crescer há cerca de duas semanas. Em 22 de dezembro, por exemplo, estava em 3,1 mil casos. Já na terça-feira (04/04) saltou para 9,8 mil.

Para Nehab, não há dúvidas de que o país volta a enfrentar um período preocupante. “Agora, dias depois do Réveillon, acredito que os casos vão explodir, uma coisa impressionante, assim como ocorre em outros países”, diz. “Em 15 dias, poderemos ter um aumento significativo e muito assustador de casos”, declara. E essa subida de casos inclui também o público infantil, ressalta o pediatra.

O impasse sobre o uso da Pfizer destinada às crianças, comenta o especialista, torna a situação mais preocupante porque a vacinação desse grupo é classificada como medida estratégica para combater a pandemia.

“A gente vai começar essa vacinação atrasado, em uma negação inacreditável da ciência. No mundo inteiro, todas as agências reguladoras de saúde recomendam a vacinação para crianças. Absolutamente o mundo inteiro é a favor disso, mas aqui a gente se afastou da ciência”, declara o médico.

“É difícil refutar a ciência com meia dúzia de opinião contrária, que acaba levando pânico e medo. A gente nunca teve uma consulta pública para vacina de nada, sempre foram respeitadas as etapas obrigatórias de segurança. Mas agora pessoas de má-fé decidiram propagar mentiras”, acrescenta o especialista.

Segundo dados da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19, o Brasil registrou 301 óbitos de crianças pela doença no período de março de 2020, início da pandemia, ao começo de dezembro de 2021. Conforme esses dados, 2.978 crianças receberam diagnóstico de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por covid-19 e foram registradas 156 mortes em 2020. Já no ano passado, até 6 de dezembro, foram registradas 3.185 novas infecções e 145 mortes.

A vacinação desse grupo, apontam especialistas, ajuda a evitar que as crianças adoeçam gravemente, mesmo que contraiam a doença. Também protege adultos e crianças mais novas que convivem com elas.

 

Em novembro, a vacina destinada às crianças começou a ser aplicada nos Estados Unidos. Posteriormente, também passou a ser usada no Canadá, Israel e na União Europeia.

No Brasil, o tema se tornou imbróglio, mesmo com a aprovação da Anvisa. O Ministério da Saúde fez uma consulta pública sobre o tema e chegou a um resultado contrário ao que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o presidente Jair Bolsonaro defendiam: a maioria das pessoas se manifestou contra a exigência de prescrição médica para a imunização das crianças.

Nesta quarta-feira, um dia após revelar os resultados da consulta pública, o Ministério da Saúde divulgou detalhes sobre a campanha de vacinação de crianças. Segundo a pasta, será necessária a presença dos pais ou autorização por escrito, não precisará de apresentação de receita médica e a vacina não será obrigatória.

De acordo com as regras divulgadas pela pasta, o intervalo entre as duas doses para as crianças será de oito semanas. A aplicação será feita em ordem decrescente de idade (das mais velhas para as mais novas) e serão priorizadas aquelas com comorbidade ou deficiência permanente.

A previsão é de que cheguem cerca de 20 milhões de doses ao país até o fim do primeiro trimestre, sendo cerca de 3,7 milhões delas entregues até o fim de janeiro.

O Ministério da Saúde estima que sejam imunizadas cerca de 20 milhões de crianças no país. A previsão é de que a vacinação comece até o dia 15 deste mês.

Durante a coletiva de imprensa nesta quarta, o ministro Marcelo Queiroga defendeu a necessidade da consulta pública sobre a vacina. Ele ainda disse que não há demora na vacinação das crianças. “O Brasil está absolutamente dentro do prazo”, afirmou.

Desde a autorização da Anvisa, em dezembro, autoridades de diversas regiões do país passaram a criticar a conduta do Ministério da Saúde em relação ao tema e afirmaram, mesmo sem aprovação do governo federal, que iriam vacinar as crianças de seus Estados.

Para Márcio Nehab, agora é fundamental que as pessoas cobrem urgência das autoridades em relação ao tema. “Essas vacinas precisam chegar para ontem, antes do circo pegar fogo. Já vamos começar atrasados, assim como foi com os adultos. Isso é uma briga política e não científica”.

 

‘Precisamos ver a situação daqui a 15 dias’

Além da vacinação das crianças, Nehab destaca que também é fundamental aplicar a dose de reforço em adultos e adolescentes. Ele ressalta que ainda não se sabe o impacto da ômicron no Brasil ou o papel que as vacinas aplicadas no país terão no combate à nova variante. Porém, a infectologista frisa que a imunização é a principal forma de prevenir efeitos graves.

Segundo Nehab, somente daqui a algumas semanas será possível analisar o atual cenário da pandemia, por meio dos números de mortes e internações pela covid-19. Ainda que seja uma variante que tem causado um quadro mais brando, o médico frisa que a rápida propagação da ômicron também pode sobrecarregar leitos e aumentar os números de óbitos.

“Mesmo que seja menos grave, ela infecta mais pessoas e isso pode aumentar também as chances de algumas delas desenvolverem casos graves”, avalia o médico.

Ele diz que só atendeu casos leves nas últimas semanas, mas comenta que alguns colegas de profissão já internaram adultos e crianças no atual período. “Precisamos ver a situação daqui a 15 dias. Com tanta aglomeração nas últimas semanas e muitas pessoas sem o uso de máscaras, a chance de isso dar problema é 100%”, declara.

// BBC Brasil